Liberal, neoliberal, ultraliberal: entenda o que é o liberalismo e por que o termo voltou a dominar o debate
02/02/2025
Conceito foi mudando ao longo dos séculos e voltou 'à moda' em tempos de polarização entre esquerda e direita. Donald Trump em seu primeiro discurso como presidente
REUTERS
Não há muito como escapar. Nos últimos anos, qualquer pessoa que se prontificou a debater política e economia entre amigos, no trabalho ou na academia ouviu, em poucos minutos, alguma referência ao termo "liberalismo" ou alguma de suas variações.
Na Europa, o termo ajuda a definir até o tipo de regime político: são as tais "democracias liberais". Ao mesmo tempo, líderes de ultradireita como Donald Trump (Estados Unidos), Javier Milei (Argentina) e Georgia Meloni (Itália) recebem outro crachá: são os "ultraliberais".
No Brasil, o mercado financeiro e os empresários são, às vezes, chamados por seus detratores de "burguesia neoliberal". E na última década, parte da direita passou a se identificar com um mantra: "liberal na economia, conservador nos costumes".
Mas... afinal, o que são esses liberalismos? E como eles se relacionam, por exemplo, com o debate em alta sobre a liberdade de expressão nas redes sociais e a moderação de discursos de ódio?
O g1 conversou com especialistas para traçar as diferenças e entender o papel que essa filosofia ocupa no mundo atual.
O que é liberalismo?
A corrente de pensamento conhecida hoje como liberalismo surgiu no século 17 como uma resposta ao absolutismo dos reis que comandavam a Europa naquele período.
Na monarquia absolutista, o rei herdava o trono em razão de laços sanguíneos e controlava tudo do reino: o comércio, a vida no campo e na cidade, os cargos da nobreza e até a crença dos súditos.
"O liberalismo nasceu como uma reação contra o absolutismo monárquico e as tradições feudais, propondo uma nova ordem social baseada em princípios de liberdade e igualdade. Filósofos como John Locke, Adam Smith e Montesquieu foram alguns dos clássicos das ideias liberais", explica o cientista político João Felipe Marques.
▶️Na política, o liberalismo clássico defende a liberdade individual e a igualdade de direitos dos seres humanos, em qualquer classe social.
▶️Na economia, a liberdade para que cada cidadão produza e consuma como bem entender – surge aqui a "lei da oferta e da demanda", por exemplo.
Na política e na economia, havia uma ideia central: o Estado – que antes comandava tudo – deve ser menos controlador e interferir o menos possível na vida dos cidadãos.
Entenda, em resumo, a principal ideia de cada teórico citado por Marques:
John Locke: defensor da liberdade e da tolerância religiosa, acreditava que os indivíduos têm direitos naturais à vida, liberdade e propriedade – e que o governo deve atuar para proteger esses direitos.
Adam Smith: principal nome do liberalismo econômico, a ideia dele era de que os indivíduos deveriam conduzir suas atividades econômicas sem uma intervenção excessiva do Estado.
Montesquieu: sistematizou a teoria da "separação dos poderes" entre Executivo, Legislativo e Judiciário, o que na prática já significava que o rei não comandava todas essas funções.
Obra de John Locke ajuda a entender pressupostos do liberalismo político
Por mais que as ideias de liberdades individuais e defesa dos direitos humanos, por exemplo, pareçam hoje mais associadas a direita ou esquerda, políticas liberais são adotadas em todo o mundo tanto por políticos progressistas quanto por conservadores.
O liberalismo clássico, nesse sentido, está também amplamente ligado ao conceito de democracia – onde a população tem o direito de exercer, por exemplo, o voto livre.
Ouça abaixo o episódio "Liberdade" do podcast O Assunto, que também discute o liberalismo e a cooptação do termo pelos governos atuais:
O liberalismo está em crise?
Ao longo da última década, a ascensão de governos conservadores (ou ultraconservadores, a depender de quem classifica) em todo o mundo parece ter colocado parte desses preceitos em xeque.
Os direitos das mulheres e da população LGBTQIA+, por exemplo, e o fechamento das fronteiras nacionais para imigrantes e produtos importados são sinais dessa suposta "crise do liberalismo".
O cientista político Murilo Medeiros, no entanto, avalia que as ideias liberais seguem fortes em todo o mundo – e que não há chance de serem derrubadas por completo.
"O liberalismo, a despeito das críticas recorrentes que costuma receber, continua sendo uma das correntes de pensamento mais influentes no mundo. É fonte de prosperidade, paz, inclusão, livre manifestação e geração de oportunidades", diz Medeiros.
"Com o tempo, o liberalismo evoluiu para se adaptar às demandas e desafios das sociedades contemporâneas e incluir diferentes vertentes, como o liberalismo social, que equilibra a liberdade individual com a justiça social", completa.
O legado – e as críticas
Teóricos e cientistas políticos costumam creditar às ideias liberais grande parte da evolução dos direitos civis conquistados nos últimos séculos.
A conquista do voto feminino, a luta pela igualdade racial e o combate à homofobia, por exemplo, são vistos como propostas liberais – naquele sentido político, da garantia das liberdades individuais.
Especialistas ouvidos pelo g1 apontam três características centrais das sociedades modernas que são herança do pensamento liberal:
economia de mercado: o termo se refere à promoção do capitalismo e da livre iniciativa como promotores do desenvolvimento econômico, garantindo a emancipação social dos indivíduos;
direitos humanos: o Brasil, por exemplo, é signatário de dezenas de tratados e declarações internacionais que protegem direitos fundamentais – a Constituição de 1988 leva o apelido de "Cidadã" por ter incorporado esses elementos;
democracia liberal: estabelecimento de governos representativos baseados no voto e no estado democrático de direito.
Falar dessas conquistas não significa dizer, no entanto, que o liberalismo é o único pensamento possível – ou que não gere, também, crises e problemas.
Cientista política e doutoranda na Universidade de Brasília, Isabela Silveira Rocha afirma que o mundo vive hoje um liberalismo de viés corporativista, ou seja, "capturado" por grandes corporações que exercem forte influência sobre os governos e a sociedade.
"No mundo, o liberalismo está consolidado nesta nova fase de monopólio, já que o corporativismo capturou a máquina estatal. Hoje, nos EUA, bastião do liberalismo, o modelo é frequentemente associado ao poder das grandes corporações", diz.
"[Essas corporações] influenciam diretamente as políticas públicas por meio de lobby e financiamento de campanhas políticas, capturando a política e permitindo que essas empresas – não eleitas – moldem legislações e regulações em benefício próprio, promovendo uma versão distorcida – e avançada – do liberalismo original", descreve.
Neoliberalismo e ultraliberalismo: as novas faces
O conceito e a aplicação das ideias liberais mudaram tanto ao longo dos últimos séculos, que o termo deixou até de fazer sentido para explicar algumas das tendências adotadas por filósofos, autoridades e governos mundo afora.
Apesar do nome, o "neoliberalismo" mesmo já não é mais tão novo. Os exemplos mais clássicos dessa vertente começaram a ser implementados nas décadas de 1970 e 1980.
O "neoliberalismo" ganhou esse nome, naquele momento da história, porque marcou uma retomada do liberalismo clássico.
O mundo tinha passado por décadas de maior intervenção do Estado na economia, sobretudo em países arrasados pelo impacto da Primeira e da Segunda Guerra Mundial. Em meio aos impactos da Guerra Fria, economistas e políticos voltaram a defender políticas de maior rigor nos gastos públicos, privatização, liberdade econômica e estímulo ao capital privado, por exemplo.
"Com a evolução do capitalismo e a ampliação dos direitos civis, surgiu o termo 'neoliberalismo' para designar o liberalismo contemporâneo. Embora mantenha as mesmas bases filosóficas, o neoliberalismo reflete as dinâmicas de um contexto econômico e social mais recente", explica João Felipe Marques.
Lula diz que neoliberalismo agrava a desigualdade econômica e política
"Muitos especialistas, no entanto, falam que o termo 'neoliberalismo' tem um viés negativo, preferindo manter só o uso do termo 'liberalismo'", diz Marques.
Já mais recentemente, governos de direita que assumiram o poder após vencerem eleições em países como Estados Unidos, Hungria e Argentina passaram a ser classificados por teóricos e analistas como "ultraliberais".
"A visão ultraliberal vai além do liberalismo clássico ao adotar posições mais radicais em relação à liberdade individual e à limitação do Estado", explica o cientista político Murilo Medeiros.
"Os ultraliberais veem qualquer forma de intervenção estatal como prejudicial, defendendo que indivíduos e mercados devem resolver questões sociais e econômicas de forma livre", afirma.
Por serem recentes, os conceitos de neoliberalismo e ultraliberalismo têm, na teoria social, significados mais relacionados à economia.
Mistura no 'mundo real'
Na análise política, é mais comum que se usem termos como "ultradireita" e "extrema-direita" – embora, no mundo real, seja comum que um mesmo governo misture políticas liberais e outras mais intervencionistas, tanto na economia quanto nos costumes.
Governos que adotaram o receituário "ultraliberal" na economia nos últimos anos, por exemplo, frequentemente têm posições menos liberais (ou seja, mais conservadoras) em temas como aborto, drogas e sexualidade.
Ao mesmo tempo, governos que dizem rejeitar a "cartilha liberal", não raro, são obrigados a propor e adotar regimes de maior austeridade econômica e menor intervenção do Estado para dinamizar a economia ou controlar a inflação, por exemplo.